sexta-feira, 31 de julho de 2020

Levanta-te e (se quiseres) chora

É desta
Que me afundo
Que me afogo
Pela primeira vez
A única, a última
Peso a mais
não pode flutuar.

E nunca foi
Permaneci. Intacta. Imóvel. Serena.
Chegou uma corrente de água salgada.
Passou uma andorinha sinhá.
Nasceu um pé de laranja lima.
Relembrou-se a memória do que sempre fomos.

A resistência é feita de momentos de dor e construída sobre o alívio de estar vivo. 
E se a tua existência for a minha melhor alucinação?
E se o teu nome não constar no dicionário dos nomes próprios?
E se nunca, em toda as histórias da humanidade, aconteceu alguém ter a tua face?
E se a tua linguagem não for aceite como língua?
E se a música que ouço quando suspiras não for considerada canção?
E se na rua em que moras não há código postal?
E se o teu corpo for só reflexo do meu?

Acordo sobressaltada, um pouco menos,
que quando me assombram todos os outros silêncios do mundo. 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

"E que a morte da diferença, o chão da revolução, é o bom riso à flor da mão. Não é por te rires que te caem os dentes, mas entretanto há desdentados. O chão da revolução não é a morte da diferença, nem o bom riso à flor da mão. O chão da revolução é a morte do valor da diferença, de todas as diferenças e não só daquelas em que estás a pensar."

sábado, 25 de julho de 2020

Em espelho

Vejo-te a olhar um muro branco
Ou o tronco de uma laranjeira,
Talvez só aquele baloiço vermelho
E pensas que será impossível tocar-lhes,
visto que, ultimamente, o teu corpo trespassa qualquer objecto.
Andas assim desde que a dimensão física da realidade se soltou da tua pele.

sexta-feira, 24 de julho de 2020



- Matilde Campilho

Imagino-a mulher-vendaval, dos que levanta toda a areia da praia.

Mais fácil é saber o que não é

A multiplicidade do eu não é ciência exacta nem utensílio para tornar versos mais interessantes. Ser plural não é vantagem evolutiva. Não é existir sendo vários. Não é acordar e decidir: Hoje, sou isto. Não é ter a liberdade do controlo. Não é crescimento individual. Não é compreensão do próprio. Não há fascínio nenhum no colapso. Não é conhecer as linhas do corpo nem entender a complexidade da mente.

Não é. 

É só sobreviver em permanente conflito com a ambiguidade de ser nada e nunca tudo. Os flutuantes. 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

A ti, que me tens só em noites vazias

Não terá o teu nome
Tal como eu não te tenho
Nem vislumbro o teu sorriso leve
Nem ouço a tua voz cantada
Nem me embala a dança que és

Escrevo no escuro de um silêncio.
Não sobre o teu nome
Não sobre a tua pele
Ainda que sobre ti

E digo que és toda uma outra energia
Digo com verdade, até porque
                não sei viver de outro modo.
E digo que és intensidade e força
Sem medo de quase nomear demais.

E digo que és enigma e insegurança,
Movimento em súbita inquietação.
Tal como és desencontro. Falta de encontro. Falha no conto. Fugaz des(conforto).

Pior é, além disso, seres verso
dos que ecoam em nós
uma vida inteira.
Daqueles sem vergonha
que orbitam um espaço cortical 

sem pedido de autorização formal.

Ainda pior seria seres dúvida,
Não fosse isso a melhor parte da vida

terça-feira, 7 de julho de 2020

Dizem que é pela boca, pelo relógio, pelas escadas. É pelo indivíduo. É com atenção ao detalhe. Dizem que assim é que se trata a dor. 

sábado, 4 de julho de 2020

Elegia e Postal


Eu e tu Eramos divergência, Corpos unidos em mentes distantes Jovialidade indiferente ao pensamento Felizes num conjunto inconsciente,
Mas corria tão pouco de substância e
escasseava tanto a razão. Não há rios sem trajectória. Eu e tu Eramos convergência, Mentes unidas em corpos distantes A maturidade de crescer consciente Felizes na segurança de nós próprios,
Mas corria cada vez menos vibração e
escasseava a profundidade. Não há rios sem poesia. Eu e tu? Talvez sejamos apenas uma ideia, Existentes nas palavras que ecoam no silêncio Crentes em semelhanças, ainda que,
despertos pela curiosidade da diferença.
Tu, que me perturbas sem cuidado e que me invades sem me tocar
Tu, és toda uma outra energia E não há rios sem nascentes.

Em resposta

Dias de chuva larga,
Noites frias de cansaço fácil.

Sofás sem mantas,
Cheiro a casas vazias,
Salas nuas de pessoas quentes.

Silêncios pesados ou
ausência de silêncios leves.

Medo da posse e da perda,
Receio de não saber ser só
eu. Esquecer o meu nome.

Lugares desonestos, sempre
cobardes na insinceridade.

Pessoas que vão sem duvidar, 
Quem se evapora sem dificuldade. 
Gente que deixa pendurada a memória, 
Sem palavras, sem saudade. 

É isto.
O que me faz sofrer. 

Sobre o estado do mundo

Existe uma ideia,
Um tanto temível e aterradora,
Essa que te assorba o pensamento
E te transtorna o espírito.

Plantaram-te um dia uma ideia
De que és vítima do excesso de liberdade alheia
E que a mudança será o fim de tudo.
Será extinção do futuro e das crianças.
Será a seca da melhor das espécies.
Será a erradicação da humanidade.
E pior que tudo, de ti. Será a extinção de ti.

Gritas: cuidado!
Olhem que há perigo em tantos direitos.
A emancipação vai conspurcar a sociedade!
É preciso alguém que seja a norma.
É imperativo ter limites para a igualdade!

Receias por ti e pelo conhecido,
Rezas em silêncio por estabilidade social e
Procuras quem queira manter o habitual.

E num múrmurio pensas baixinho,
Num mundo das minorias dominantes
Serei eu o oprimido?

Já viste quão construtivo seria,
Se um dia o vento, num sopro suave,
Viesse contar-te em segredo
Que tudo é apenas uma ideia
Só tua. Que o pânico existe
Só em ti.

E que isso é um problema
Só teu.


As pessoas, tal como os livros, devem ser deixadas livres. Livres para ir ou para ficar. Livres para ser ou para deixar de ser. Os livros não são de ninguém. Muito menos são do comprador, porque não se compram sentimentos, nem estão à venda lágrimas ou sorrisos. Os livros são de quem os lê com intensidade.

A ti, que não vês


Hoje é dia de olhos abertos,
É tempo da realidade que custa
e lugar da verdade que dói.

A ti que não quiseste ver,
Por medo da conivência
ou por facilidade da ignorância.
Pela ingenuidade da segurança
ou só pelo egoísmo de não ser
a tua pele.
Por receio de te teres ausentado
e nem teres reparado.
Por vergonha do privilégio fácil
ou por angústia da tua própria pobreza.
Mas, mais que tudo, pela culpa.

Disseram-me que hoje é dia de olhos abertos, abre os teus.
As acções ficam só com as pessoas.

Hoje é dia de olhos abertos,
E a luta faz-se, como sempre, de pé.


#BLM 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

E se ser certo for,
Das maiores incertezas do mundo?

Tu aí que caminhas, 
Com certeza nas mãos
Mas sem planos na cabeça
És certo de quê?

Tu aí que caminhas,
Com certeza no peito
Mas sem confiança na voz
És certo de quê?

Tu aí que carregas,
Com certezas aos ombros
Mas sem brilho na pele
És certo de quê?

E tu aí, sim tu que lutas,
Sem certeza nenhuma
Mas com esperança no olhar
Não és mais certo que nós?



Difícil é tornar-se ausência
Estando presente e, ainda assim, 

Pensar que se está em lugar algum. 

Existir não é sinónimo de coisa nenhuma,
É só e apenas ver a vida passar ao lado
E não lhe dizer olá. 

Tudo o que não mexe paralisa,
E no outro dia reparei
Que os teus olhos não mexem
Nem a mente, sobretudo a mente.

Para reagir continua a ser preciso movimento
E tudo o que é paralisado já não move.

Difícil é tornar-se estático
Em movimento e, ainda assim,
Achar que se vai a algum lugar.