terça-feira, 18 de agosto de 2020

Tristes não são os pedintes

Tristes não são os pedintes 
Triste é quem atira a moeda
E olha com desdém de alto
E sacode a mão depois do toque

Tristes não são os pobres
Triste é caridadezinha
À espera que no céu
Não haja dessa pobreza suja.

Tristes não são os imigrantes
Triste é dizer pobres coitados
Sem consciência que toda a gente
Nasce num lugar qualquer

Tristes não são os miseráveis
Triste é ser miséria de alma
E viver fingido no pedestal alto
Onde só é humano quem lá subiu

Por isso não,
tristes não são os pedintes
triste são os que ignoram.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

- Quantos messias é que temos hoje?
- Pelas minhas contas uns três. O primeiro é a  reencarnação de Jesus Cristo, o segundo diz que é a pomba da santíssima trindade e o terceiro vê Deus todas as noites e diz que ele afinal é um cão.
- Ai é? (Expressão mais usada pelos psiquiatras de todo o mundo) Eles estão em quartos sepadados certo?
- Claro
- Que óptimo! Hoje queres encomendar almoço da hamburgueria do bairro?
- Pode ser, mas para mim pede o portobello que agora sou vegan.

A todos os messias que tiveram o azar de nascer depois de se ter começado a categorizar a capacidade alucinogénica do cérebro humano.

domingo, 9 de agosto de 2020

Culinária

Como é que se destrói uma coisa bonita?

Colocas 25% vontade de escapar
Adicionando 20% receio da entrega
Ainda uns míseros, mas importantes
5% de tendência para o abismo
E uns pesados 50% de medo

(Medo de que a falta de correspondência 
Signifique a destruição de qualquer réstia de auto-estima)

Juntar tudo, triturar até ser papa
Levar ao forno pré-aquecido a 180º

Insólito

É a estranheza que desperta
O olhar profundo do horizonte
As mãos cansadas do ofício
Os lábios secos da melancolia
Os dedos adormecidos da rotina

E um arrepio percorre o corpo, 
traz consciência da perturbação.
O perigo é um sinal contraditório
Alimenta tanto quanto faz passar fome.

Mas de entre todas as razões para te estranhar,
A mais real é só "porque os outros se calam mas tu não."

Pedaços de nós (I)

Pés descalços correm entre o quarto e a cozinha
As gavetas estão eternamente entreabertas
Corpos nus estendidos sobre a cama após o banho
cobertos com um lençol lavado de branco 
à espera que o creme se entranhe e a vida possa então começar

Há sempre sumo de laranja e água fresca
E nunca faltam mantas para combater até a brisa mais suave.
Livros empilhados de forma vaga, perdidos na falta de espaço, desordenados 
Tal como todos os dias os quadros estão ligeiramente tortos
E os cantos foram todos ocupados pelo nosso excesso  

Pés descalços correm, saltitam, dançam discretamente
Recusam a passividade do andar e rejeitam
a monotonia da sua própria existência. Como nós.

E agora?
Isto é genética ou herdei mesmo todas as tuas manias?

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Quando me perguntas o que é o cancro...


Respondo que o cancro é uma amostra de imortalidade. É uma célula que se esqueceu de quem é e de onde pertence, como se de repente deixasse de fazer sentido viver naquela morada. A partir daí é tudo uma tremenda corrida desenfreada por outros locais, à procura de ser qualquer coisa, ânsia de sobreviver deixando um rasto de destruição, invasão até de si próprio porque nada é suficiente. Já se sabe que a imortalidade anda de mãos dadas com a insatisfação eterna. E se fosse um poema seria um conjunto inevitável de estrofes loucas, cada verso a ser mais forte que o anterior, a colapsar a folha e extravasar o caderno. Palavras que passariam para a secretária, depois para o chão, para a parede, para a pele do escritor até todo o quarto se tornar uma escuridão de letras ilegíveis.
Ainda está para ser inventada psicoterapia para as células perdidas.