segunda-feira, 28 de setembro de 2020

We've got you


I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweater
Ain't got no perfume, ain't got no bed
Ain't got no man
Ain't got no mother, ain't got no culture
Ain't got no friends, ain't got no schoolin'
Ain't got no love, ain't got no name
Ain't got no ticket, ain't got no token
Ain't got no god
Hey, what have I got?
Why am I alive , anyway?
Yeah, what have I got
Nobody can take away?
Got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth, I got my smile
I got my tongue, got my chin
Got my neck, got my boobies
Got my heart, got my soul
Got my back, I got my sex
I got my arms, got my hands
Got my fingers, got my legs
Got my feet, got my toes
Got my liver, got my blood
I've got life, I've got my freedom
I've got life
I've got the life
And I'm going to keep it
I've got the life

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

O debate do absurdo

    Esta semana, um delegado apresentou uma moção na convenção de um partido político. Moção essa que foi considerada "absurda" pelo próprio partido numa tentativa (talvez propositadamente fraca) de distanciamento de si próprio. Ainda que a estratégia seja a ilusão da ruptura com o sistema, ainda há certas ideias que convém não expressar tão assertivamente quando o partido ainda está em ascensão. É contraproducente mostrar o máximo do extremismo logo no início da corrida, até porque há que guardar trunfos para quando se atinge ao topo e já se gerou o caos suficiente para os direitos humanos serem algo assumidamente ultrapassado.

    O absurdo já é um hábito nas ideias apresentadas por este partido. À inconstitucionalidade também já nos vamos habituando e até à ausência de qualquer réstia de humanismo também estamos a ficar acostumados. Portanto, nada de novo. Ainda assim, não deixa de ser relevante analisar as reacções que presenciei ao facto de 38 pessoas terem aprovado um documento, que entre várias coisas, dizia a seguinte:

"as mulheres que abortem no Serviço Público de Saúde, por razões que não sejam de perigo imediato para a sua saúde, cujo bebé não apresente malformações ou tenham sido vítimas de violação, devem ser retirados os ovários, como forma de retirar ao Estado o dever de matar recorrentemente portugueses por nascer, que não têm quem os defenda no quadro atual"

    Ora no meio hospitalar, o qual habito na maior parte do meu tempo útil, ouvem-se várias vozes naturalmente escandalizadas. De repente inicia-se um debate sobre a falta de carácter científico desta proposta, sobretudo pelos vários motivos pela qual a esterilização feminina acontece através da laqueação das trompas e não ooforectomias bilaterais. E assim, fala-se sobre a menopausa precoce, cancro ginecológico, aumento de risco cardiovascular, da demência, da osteoporose, entre outros, e consequentemente dos custos em saúde que tal implicaria... Conversa-se sobre o ridículo da falta de conhecimento na área da saúde que está latente em programas de todo no espectro político. Rimo-nos um bocado da ignorância alheia, com a condescendência habitual que nos diverte. Volta-se às rotinas das consultas.

     Ainda no meio social universitário observa-se ainda vários fenómenos argumentativos sobre o tema e surgem frases irónicas como "porque é que não tiramos os testículos aos homens que os fizeram". Rimo-nos mais um bocado.

    Estamos numa sociedade ocidental alegadamente desenvolvida a falar de submeter seres humanos a actos cirúrgicos não consentidos e é esta a reacção que nos ocorre? Estamos a falar de castração obrigatória de mulheres no Serviço Nacional de Saúde. Não é só obviamente inconstitucional. Não é só embrulhar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e deitar ao lixo. É uma aberração histórica. É o alarme da democracia a tocar aos berros.

    Interessante é a facilidade com que o debate público cai na barbaridade e se entranha tão profundamente no universo do ridículo que discute assumindo a possibilidade de isto ser real. Pondero se este não será o verdadeiro objetivo, se não é pura estratégia. Uma vez aberto o espaço para ponderar sobre o absurdo, talvez se crie margem para se desvanecerem os limites da ética. E, pouco a pouco, nos vamos tornando menos humanos.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

 


A queda do S

Sou simples
        Somo sóis
                   Sussurro sonetos
                                    Suspiro silentes
                                                   sensações
                                                                   sonoras

"As palavras não vêem a morte"


sobre - Teatro O Bando - no festival Todos 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020


Mas afinal quem é que está preparado para pôr a tocar a balada do rancor do vento quando ainda não passou na rádio o primeiro sol da madrugada?

Então não o faças

"Então queres ser um escritor?

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.
e nunca houve."

- Charles Bukowsky

(Tradução: Manuel A. Domingos)

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Imaginaste-me

Achei que era a distância o que distancia
O tempo a passar devagar
A diferença dos espaços
As conversas próprias de cada lugar
ou as pessoas que de perto se tocam mais.

Pensei o quão útil isso seria
Um afastamento seguro e fácil
Aquela saída mais ou menos limpa
Fruto da oportunidade do acaso
E do conjunto ser por acaso inoportuno

A segurança das almas descompostas
é impedir o comprometimento saudável.

E afinal foste, como sempre aliás,
O inverso. Desconcerto do verso.
Também não há saídas limpas
em entradas inundadas pela sujidade do corpo.
E a distância não distancia lá grande coisa
Quanto faz nascer a ânsia de te ver.
Só mais uma vez. A última ou a primeira.
Tanto faz.
Os nomes das cidades têm cada vez menos importância. 
Aliás, como todos os nomes.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Invejo a abstração das árvores.

A imobilidade serena com que aguardam o passar do vento.

sábado, 5 de setembro de 2020

0 e 1

Para onde vão as memórias que nos esquecemos que temos?
Onde estão elas?
Ninguém sabe ainda, algumas estão à espera só prontas para ser recuperadas, mas outras pelo contrário afundam-se cada vez mais.

0 e 1
As memórias não são poesia e eu não sou poeta. 
As memórias são matrizes, são códigos binários, são moléculas, são correntes e circuitos. 
Sempre os mesmos circuitos que se alteram a todo o momento.

0 e 1
Saber que existe não é saber como existe.
Sei que me lembro de nós na primeira folha e não me consigo recordar de quem fui nem do que escrevi. 
Não me recordo de ti sequer.
Não sem esforço, não sem alterar a matriz mais uma vez. 
Não sem mudar de código.

0 e 1
Há alturas em que gostava de avançar menos, de ficar mais tempo estagnada num circuito, balançar no limbo e enganar o meu corpo ao dizer-lhe as horas erradas.

Se me sinto frustrada
Escrevo.
Se me urge a palavra
Escrevo.
Se me rasga a raiva
Escrevo.
Se me deixa irrequieta
Escrevo.
Se me custa a insónia
Escrevo.

E escrevo, mesmo que não tenha caderno
e se esgotaram todos os lápis na papelaria.
Escrevo numa factura do supermercado
com um marcador fluorescente amarelo.
Escrevo nos cartões verdes do metro
com as canetas do paraíso do fundo das malas.
Escrevo do antebraço ao fim da falange
com lápis de cor da criança do lugar ao lado.

É importante que o faça antes que 
 a palavra passe a minha paragem e
    deixe de haver sentido em ser eu a escrevê-la.

Em jeito de Cena

 Contaminas as minhas memórias de um lugar bonito com as tuas histórias sobrepostas, distantes de mim e que não sendo minhas me contagiam. Não sendo eu, deixei de sentir que era o que pensei que tinha sido. Não sendo nós, estragou o meu entendimento do que julguei possível sermos. Como é que eventos que não têm relação connosco nos afectam tão profundamente quanto se lá estivessemos estado em presença? Como se fossemos plateia de uma tragédia cómica e assistindo de fora sentissemos um calafrio que nos confronta com o receio de que a nossa própria vida não passe de uma comédia trágica, ainda por cima de fraca qualidade. É devastador como é que a perspectiva de um momento se inverte por completo só com o conhecimento de vivências externas futuras a ele (ainda que passadas ao actual presente). E neste presente o que nos resta? Se a memória se dissipou e com ela a esperança no que não nos unindo, nos poderia unir. Claro que não é possível perder o rasto do vazio, no entanto há forma de nos levarem uma ideia e, mesmo que roubada inocentemente, não deixa de ser justa a reivindicação dos idiotas.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

A carne é fraca
        e quando a carne é fraca, 
O corpo é mole
        e quando o corpo é mole,
A mente é vazia.

Um pouco de margem


 

Sobre a constatação da mistura inevitável de que somos feitos

"Não era a depravação da vida o que me chocava e entristecia. Nem que a pureza me parecesse uma cidadela ameaçada e inatingível. Precisamente uma das coisas que eu, por experiência própria, ia aprendendo era que ambas coexistiam da maneira mais insólita e nas situações mais inesperadas. Havia assomos de pureza profunda, em seres e em momentos de degradação total; e as pessoas puras nunca o eram tanto, que alguma degradação não as rodeasse, que elas aceitavam. O que me doía e inquietava não era isso, mas que a pureza e a degradação se misturassem tão inextrincavelmente, dependessem tão intimamente uma da outra, que às vezes se pudesse não saber não só se as motivações de uma não era a outra. Mesmo mais e pior: a que ponto nós não as reconhecíamos, não tínhamos como distingui-las. Na verdade, muito pior que uma poder ser ou parecer a outra era que nós não soubéssemos ao certo, num dado momento, de qual se tratava."

Jorge de Sena, Sinais de Fogo