sexta-feira, 25 de setembro de 2020

O debate do absurdo

    Esta semana, um delegado apresentou uma moção na convenção de um partido político. Moção essa que foi considerada "absurda" pelo próprio partido numa tentativa (talvez propositadamente fraca) de distanciamento de si próprio. Ainda que a estratégia seja a ilusão da ruptura com o sistema, ainda há certas ideias que convém não expressar tão assertivamente quando o partido ainda está em ascensão. É contraproducente mostrar o máximo do extremismo logo no início da corrida, até porque há que guardar trunfos para quando se atinge ao topo e já se gerou o caos suficiente para os direitos humanos serem algo assumidamente ultrapassado.

    O absurdo já é um hábito nas ideias apresentadas por este partido. À inconstitucionalidade também já nos vamos habituando e até à ausência de qualquer réstia de humanismo também estamos a ficar acostumados. Portanto, nada de novo. Ainda assim, não deixa de ser relevante analisar as reacções que presenciei ao facto de 38 pessoas terem aprovado um documento, que entre várias coisas, dizia a seguinte:

"as mulheres que abortem no Serviço Público de Saúde, por razões que não sejam de perigo imediato para a sua saúde, cujo bebé não apresente malformações ou tenham sido vítimas de violação, devem ser retirados os ovários, como forma de retirar ao Estado o dever de matar recorrentemente portugueses por nascer, que não têm quem os defenda no quadro atual"

    Ora no meio hospitalar, o qual habito na maior parte do meu tempo útil, ouvem-se várias vozes naturalmente escandalizadas. De repente inicia-se um debate sobre a falta de carácter científico desta proposta, sobretudo pelos vários motivos pela qual a esterilização feminina acontece através da laqueação das trompas e não ooforectomias bilaterais. E assim, fala-se sobre a menopausa precoce, cancro ginecológico, aumento de risco cardiovascular, da demência, da osteoporose, entre outros, e consequentemente dos custos em saúde que tal implicaria... Conversa-se sobre o ridículo da falta de conhecimento na área da saúde que está latente em programas de todo no espectro político. Rimo-nos um bocado da ignorância alheia, com a condescendência habitual que nos diverte. Volta-se às rotinas das consultas.

     Ainda no meio social universitário observa-se ainda vários fenómenos argumentativos sobre o tema e surgem frases irónicas como "porque é que não tiramos os testículos aos homens que os fizeram". Rimo-nos mais um bocado.

    Estamos numa sociedade ocidental alegadamente desenvolvida a falar de submeter seres humanos a actos cirúrgicos não consentidos e é esta a reacção que nos ocorre? Estamos a falar de castração obrigatória de mulheres no Serviço Nacional de Saúde. Não é só obviamente inconstitucional. Não é só embrulhar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e deitar ao lixo. É uma aberração histórica. É o alarme da democracia a tocar aos berros.

    Interessante é a facilidade com que o debate público cai na barbaridade e se entranha tão profundamente no universo do ridículo que discute assumindo a possibilidade de isto ser real. Pondero se este não será o verdadeiro objetivo, se não é pura estratégia. Uma vez aberto o espaço para ponderar sobre o absurdo, talvez se crie margem para se desvanecerem os limites da ética. E, pouco a pouco, nos vamos tornando menos humanos.

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