Um vazio que ocupa o lugar do medo
Cede o argumento, rouba-lhe o tempo
Sem (c)alma, enche o espaço vivo
Deixa morrer a ânsia de criar
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Até já, Odete Santos
Aborrece-me tremendamente o estado das coisas
Esta névoa enjoativa de fumo que paira na cidade
Estes asfixiantes aglomerados de betão e vidro
A rotina insuportável de ir para o trabalho de manhã
Encontrar as mesmas pessoas insípidas do dia anterior
E os carros, sobretudo os carros, em todo o lado, os carros
Mais as notícias cada vez mais defuntas da televisão
O eterno comentário do comentário da frase que ninguém sabe quem disse
Até os melhores políticos, os filósofos, os artistas estão todos enterrados no mesmo quintal
E a repetição, a repetição infinita é um transtorno: repitam, corujas, repitam
Ninguém vos está a ouvir. Absolutamente ninguém
Quero a revolução, não pelo preço das casas, não pelo preço do pão.
Não para esmagar bafientos fascistas, que bem merecem.
Não pela emancipação das massas. Não para salvar o povo do capital.
Não para libertar as mulheres. Não para para aniquilar os rentistas.
Não para acabar com a finança, a especulação e a dívida.
Não para salvar todas as espécies, incluindo a nossa.
Isso tudo, claro. Mas não por isso.
Quero a revolução para voltar a música boa, o gingar da manhã e o sorriso do vizinho.
O que torna tudo muito mais urgente.
Acho que ele tem uma certa razão sobre as estátuas
Que efectivamente nos afrontam na sua nudez branca
Naquela imobilidade toda profundamente nauseabunda
E aquele cair do tecido estático, denso, quase troçando
Olham-nos enquanto gritam: pureza, fragilidade, terror
É Deus que na sua habitual brancura inocente se torna negro
São todas, uma a uma, apenas espelhos
Li um conto do Manuel da Fonseca chamado "o Largo" em que ele repete a frase:
"Alguma coisa está acontecendo na terra, alguma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte"
Desde aí tenho um certo pressentimento que é isto a causa do fim das grandes narrativas. O fim do Largo é o princípio do pós-moderno.
Como é que se pode sonhar se em alguma parte do mundo já esse sonho foi sonhado e destruído?
Digo que estou nas tuas mãos
Como se fosses tu o meu corpo inteiro
E te entregasse vulneravelmente
toda a responsabilidade do meu cuidado
Mas depois não estive eu sempre nas mãos de alguém?
Ainda por cima em mãos pouco certas
Menos tangiveís, menos escolhidas por mim
Mãos em tudo alheias e invisíveis
A vida é um contínuo esforço inútil de ter certezas
Tirando todos os dias em que percebemos que isso
pouco importa,
Importa é sentir a brisa nas manhãs
Falas-me tanto de coisas abertas
Como é mais leve e solto, e livre
Mas mais solto de quê?
Mais livre de quem? Mais leve como?
Dizes que agora vamos fazer tudo aquilo
que os homens sempre fizeram com prazer
Oh, sempre os homens. Eternamente os homens.
Hoje a imitar os homens, amiga minha
Continuam as mulheres a servir os seus interesses
E eu quero lá saber de coisas abertas
Tanta teoria pseudo-moderna libertadora
Eu quero é alguém que saiba sonhar, meu bem
Com vontade de criticar todo o mundo
Eu quero é alguém que saiba ouvir, escutar,
que me saiba olhar. E aos outros, sobretudo aos outros
E venha abraçar-me por inteiro todos os dias
Não só naqueles em que sei que é meu
Eu quero é alguém que saiba amar, meu amor
E queira resgatar as liberdades perdidas comigo
Tudo o resto sim, isso tudo que é sólido
Pode dissipar-se no ar
Hoje, não há palavras neutras